No livro Espelho Índio(Axis Mundi Editora)o psicoterapeuta e sociólogo paulista Roberto Gambini faz uma analise magistral do caráter deletério que o contato com sistemas religiosos brancos tem representado para a cultura e a alma indígena. Para Gambini, desde a chegada dos primeiros jesuítas europeus vindos para o trabalho de catequese, o missionário branco projeta inconscientemente sobre o índio todas as suas carências e frustrações. Sem conseguir dominar os seus próprios impulsos e tendencias, considerados falhas ou pecados segundo os condicionamentos morais e religiosos de que foi vitima, muitos missionários os projetam sobre os índios indefesos. Ao destruir a alma indígena, por eles considerada obra do “demônio” ou das “forças do mal”, o missionário quer na verdade , inconscientemente, destruir os seus próprios “demônios”, aqueles que gritam dentro dele.

Ao falar da antiguidade das civilizações indígenas Roberto Gambini escreve:”As grandes questões da humanidade de todas as épocas foram devidamente enfrentadas e solucionadas pelo homem brasileiro (os indígenas). daquele tempo imemorial,por exemplo, como atravessar a vida, como procriar e garantir a subsistência à prole, como associar-se, como criar regras de convívio e de distribuição de bens, como produzir as condições materiais de vida, como defender-se das intempéries à doenças e demais riscos à vida, como explicar o transcendental,como achar graça na existência e explicar seu surgimento por meio de histórias e imagens, como comunicar-se com o seu semelhante.” Segundo Gambini, as respostas a essas grandes questões foram lindamente elaboradas no Brasil remoto por um memorável esforço humano que acabou sendo ignorado e destruído. Uma maneira de viver foi encontrada, sucessivamente perdida e hoje está quase extinta. “Nossos etnólogos, com os meios de que dispõe, tentam reconstruí-la para a obervação de nosso olhar preconceituoso ou fascinado, e para que possamos refletir um pouco. Há maneiras de viver, de encarar a vida e a morte, de encarar o convívio,o amor e o ódio, a guerra, o prazer,a beleza. o perigo… e isso foi elaborado no Brasil quando a civilização europeia ainda nem sonhava em nascer.”Para o autor: “Cada história ou mito indígena seria como uma auto-representação da psique brasileira de todos os tempos falando de si mesma contando sua maneira de funcionar por meio da linguagem que lhe é própria – A Das Imagens-, que é a maneira como a psique fala de si mesma até hoje, pelas imagens do inconsciente contemporâneo nos sonhos, nas fantasias, nas criações artísticas e culturais de todas as espécies.”
O que aconteceu historicamente ao Brasil a partir a partir do contato dos europeus com nossas civilizações indígenas? Um processo que negou a existência dessa dimensão psíquica própria aos aborígenes e que, além disso, operou eficazmente para destruir o que não era possível negar. Um Espelho Índio, Roberto Gambini estuda este processo analisando a correspondência dos Jesuítas do século 16 para tentar entender o que a catequese dos indígenas representava psicologicamente. Ou seja: não era suficiente que os índios adotassem certos comportamentos ou repetissem certas para palavras, era preciso leva-lós a renegar sua identidade de origem. Os jesuitas foram Mestres nessa obra,sendo capazes de criar vergonha em corpos nus ou fazer povos profundamente religiosos admitirem que não acreditavam em nada. Mas os Jesuítas diziam que os índios não eram capazes de conceber a noção de divindade; por isso cometeram o sincretismo perverso de escolher Tupã como equivalente a figura do Deus Cristão, quando é Monan-Míara e não Tupã o ápice da hierarquia sobrenatural.
” Quem acompanha com olhar crítico as cartas jesuíticas pode perceber como a alma indígena é sistematicamente solapada, exatamente porquê a ela não é atribuído o valor algum. Alias, a palavra ‘alma’ não é jamais usada, porque a discussão teológica da época era se os índios chegavam ou não a ter uma alma. A posição predominante era que não tinham que só por meio do batismo chegariam a tê-la. Portanto, o europeu sente que está fazendo um grande benefício espiritual ao índio quando converte, pois assim ele poderia evoluir de uma condição semi animal para uma finalmente humana.”
A grande questão, para Roberto Gambini é que, de um modo ou de outro, nós brasileiros somos frutos deste processo. Um processo que estruturou uma consciência, um modo de ser, pensar e agir, da qual somos portadores e representantes, queiramos ou não e da qual um passado riquíssimo foi extirpado, dissociando-se de um todo do qual, no entanto, deveria fazer parte integral e complementar. “Isso nos leva a uma posição peculiar com relação ao nosso passado, porque este ou é o nada ou é algo ignoto, uma vergonha ou um buraco negro, como dizem os astrônomos contemporâneos- Um fenômeno estranho do qual é melhor afastar-se, porque suga energia, a consciência , a identidade…”
“Se nós predispusermos à recepção não preconceituosa da psiquê indígena, e de tudo o que ela representa neste momento de crise dos valores ditos modernos, estaremos trabalhando para introduzir em nosso em nossa consciência de hoje a alteridade radical, uma lógica que nos é desconhecida, uma estética nova, uma espiritualidade que não conhecemos, uma percepção, uma sensibilidade, um modo de ser que ignoramos. Esta é a grande tarefa utópica para o século 21 brasileiro, esse trabalho da verdadeira alquimia que parte da fusão e percorre todas as etapas da transmutação dos elementos até chegar a quintessência, a última depuração da mistura de onde brota uma qualidade mais criativa e mais profunda. Isso, de fato, nunca aconteceu na nossa história em nossos processos culturais. E só isso poderá nos completar psíquica e historicamente quando então descobriremos a plenitude de nossa verdadeira identidade

Referencias bibliográficas: Revista Planeta/edição/ano 30/2002

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